Restaurações Artísticas

Como (até a primeira redação deste artigo) passei 10 anos trabalhando no mundo corporativo onde ganhei dois prêmios de excelência internacional prestando suporte e elaborando documentações de processos de suporte para dezenas de multinacionais, as pessoas têm tendência a me atribuir apenas a esse perfil profissional, ou a reparos e restaurações ligadas a aparelhos eletrônicos por eu ser um colecionador um tanto conhecido, mas muito antes disso eu trabalhei 21 anos com Computação Gráfica e minha infância foi numa família de artistas.

(Nota: Tudo isso só até a publicação original deste artigo, 04 de julho de 2021)

Ainda me lembro de quando eu era criança e meu saudoso avô me expulsava de sua oficina onde ele fazia selas para cavalos ou consertava sapatos com suas diversas (e perigosíssimas) facas e outras ferramentas afiadas de trabalhar couro, ou das inúmeras vezes em que ajudava minha mãe com seus trabalhos de pintura e artesanato em papéis especiais enquanto minha tia lecionava piano e violão.

Essa postagem de hoje, é para mostrar um pouco dessas habilidades apresentando alguns casos de restaurações ou personalizações que nada têm a ver com Eletrônica, (ou seja... meio que voltando às minhas orígens) e separei esses casos por grau de dificuldade técnica.
No entanto, quando fiz essas coisas, eu nem imaginava que um dia iria postar isso num blog. Portanto, peço desculpas pela qualidade das imagens.


É bastante comum minha mesa ficar uma enorme bagunça cada vez que faço desses trabalhos.


Caso "nível 1" - Personalização de uma sanduicheira elétrica

Certa vez eu estava procurando uma sanduicheira e caí na besteira de comprar uma numa promoção.
Até que se trata de uma sanduicheira muito boa, mas convenhamos... Sempre achei o design "amebóide" chinês dela um troço pavoroso que me incomodava profundamente e passou a me incomodar mais ainda com o tempo, já que a pintura prata original, coberta com um verniz frágil, começava a queimar com o calor, ficando umas marcas amareladas que lembravam gordura... Um horror!

Aí um certo dia minha paciência se esgotou, desmontei ela toda, lavei todas as partes que podiam ser lavadas, limpei cuidadosamente as que não podia e resolví lixar a maldita tinta prata que me incomodava...


Peças externas da tal sanduicheira, já lixadas e limpas.

Essa certamente é uma das personalizações mais fáceis de se fazer.
Basta usar tinta spray (no caso, Colorgin "919 - Arte Urbana Vermelho Ferrari", feita para ambientes externos e por isso mesmo, bastante resistente).
Ou seja... Essa personalização praticamente não passou de uma mera pintura.


Sanduicheira já montada ainda na bancada.

A tinta mencionada tem um aspecto texturizado, bastante agradável de se ver.
Uma massagem no meu transtorno obcessivo-compulsivo. Hehehe.


Sanduicheira já na minha cozinha, quase combinando com meu forninho elétrico.


Caso 2 "nível 2" - Restauração de um antigo ferro de passar roupa

Quando eu era criança (lá por 1975), minha mãe costumava usar este velho ferro de passar roupa enquanto eu fazia minhas tarefas de casa.
De lá para cá, ela já usou vários ferros de passar roupa, mas esse, até pensei em doar, como volta-e-meia faço com algumas coisas, mas além de ainda funcionar perfeitamente, me trazia lembranças e era triste ve-lo todo feio e desgastado.

Então numa noite eu estava entediado, revirando velhas relíquias num armário quando o achei e resolví trazer para a bancada onde desmontei todo...


Peças do velho ferro de passar roupas, tudo ainda sujo e desgastado com o tempo.


Infelizmente não tenho muitas fotos deste trabalho porque me concentrei nele ao invés de fotografar.
Lavei as peças plásticas, limpei detalhadamente a base-resistência (curioso como até hoje esse fabricante não mudou esse projeto), lixei e polí as peças metálicas...



As peças principais nesta foto, já estão limpas.


Um detalhe numa peça me chamou a atenção:


Tempos gloriosos da Indústria Brasileira... Exportávamos essas coisas como a China faz hoje.


Notem a palavra "MODÊLO" com acento circunflexo.
Perdí a conta de quantas "reformas ortográficas" de araque já tivemos desde aquela época e é uma pena que essas gerações mais recentes nem fazem idéia do quê se esconde por trás disso... mas enfim... isso é assunto fora do escopo deste blog.

Após todo o trabalho de limpeza, foi a vez do cabo.
Lixei, apliquei duas demãos de primer cinza spray (Colorgin 53001) e depois 3 demãos de tinta branca spray (Colorgin 55011).

Aí foi só montar tudo e aproveitar para instalar um cabo de força novo.


Ferro já pronto, montado e com cabo re-pintado.


Até aqui, esses casos parecem similares, mas existe uma diferença importante:
O primeiro é uma personalização, ou seja, uma modificação do objeto para satisfazer um gosto pessoal do dono.
O segundo é uma restauração, ou seja, existe a preocupação de tentar manter o objeto o mais próximo possível de seu aspecto e funcionalidades originais.


Caso "nivel 3" - Restauração de espelhos de parede para interruptores e tomadas

Um cliente me perguntou se era possível restaurar "espelhos" (nunca entendí por quê chamam isso assim) metálicos antigos desses de interruptores e tomadas de parede, que estavam oxidados, desgastados... eu topei o desafio e pegamos uns dois para testar a técnica.


O primeiro passo foi lixar e escovar o verniz velho.


O segundo passo é pintar com esmalte sintético brilhante (Coralit 5202685).


O terceiro passo é limpar o excesso com toalha descartável para expôr a parte metálica mantendo o fundo escuro para o efeito de envelhecimento.

Aqui é preciso sensibilidade artística para saber o quanto de tinta pode ser removido.
Se remover demais, tem de pintar de novo.


Enquanto seca, gasta-se um bom tempo com solvente e sabão para limpar as mãos.
(E é por isso que nem sempre atendo instant messengers ou telefone na hora... Mãos sujas, dinheiro limpo. 😊)



O quarto passo foi aplicar verniz "mogno", para dar o aspecto cobreado. (Sayerlack Polyrex SB.2315.2245.L2)

Aqui foram duas demãos de verniz e uns retoques extras em pontos muito brilhantes...


Os 4 estágios... do "podre" ao restaurado.


Após o sucesso desse experimento, o cliente me mandou 3 lotes para restaurar... Ou seja, todos os espelhos de parede da casa dele.


Um pedaço de um dos lotes em andamento...


Foi um trabalho bastante satisfatório que pagou as minhas contas do mês. 😊


Caso "nível 4" - Restauração de cartucho importado para computadores MSX2

Este cartucho foi um presente do querido amigo Carlos Dagnone sob a condição de restaurar o case plástico que abriga a placa original do jogo "Quarth" da Konami.

Como essa placa contém um chip especial de som chamado SCC, o antigo dono fez um hack com ele chamado "MegaROM SCC", deixando para trás um buraco no cartucho, que era usado para abrigar uma chave H-H que servia para mudar o modo de uso/programação do cartucho.

Mas ao revender o cartucho com o jogo, ele desfez o hack e deixou o buraco bem como umas travas da caixa plástica do cartucho (o que no mundo do colecionismo chamamos de "case"), quebradas. Ou seja, ele não fechava mais direito.

O rótulo foi a parte mais fácil (para quem teve 21 anos de experiência profissional diária com esse tipo de trabalho...). Bastou escanear o rótulo original e trata-lo no Adobe Photoshop convertendo-o para CMYK, depois gerar as marcas de corte e dobra e por último, o arquivo de faca no Adobe Illustrator.

Aí, meu amigo encomendou a impressão numa gráfica especializada. Ficou absolutamente idêntico ao rótulo original. (Ele deve ter pago uma fortuna pela impressão off-set!)


O rótulo redesenhado (em RGB de baixa resolução aqui). Quem quiser versão em alta resolução em CMYK, que pague pelo trabalho. Já contribuí com uma infinidade de material gráfico gratuito no Datasette.)


A parte complicada foi encontrar exatamente o mesmo plástico, com a mesma densidade e cor para cortar e colar no lugar.

Levou um bom tempo para encontrar no mecanismo de um velho leitor de DVD sucateado.


Cortando, limando e desbastando o pedaço a ser colado no buraco do cartucho com o máximo de precisão possível...



... Testando para ver se encaixa sem falhas... (E a galera aí com "nojinho" de mão suja... 😂)


Colando com adesivo instantâneo à base de cianoacrilato (e esfregando papel sulfite para tirar o excesso)...

Uma nota importante aqui: Esse plástico (ABS), meio que "derrete" em contato com o cianoacrilato. Esfregar papel sulfite ajuda a limpar o escesso enquanto tampa imperfeições no corte.


Aqui, a peça já colada e a superfície lixada, aguardando o corte da rebarba para nivelar...


Buraco tampado, com rebarba já nivelada e lixado.

Caso alguém pergunte, usei lixa d'água 3M 326U P 400 e Norton T277 grão 500.


Lixei de leve alguns pontos arranhados do cartucho, já que iria poli-lo.


O processo de polimento envolveu umas 3 "sessões"  com massa de polimento (esfregada à mão) seguido de lavagem e depois esfregado com algodão especial de polimento.

 
Com o case já brilhando (ou quase), aí partimos para o fechamento dele, feito com cola quente por dentro.


Aqui, o resultado final do buraco tampado, já com o rótulo novo aplicado no cartucho.


Por maiores que fossem os cuidados, é impossível não deixar alguma marca. Virou parte da história desse objeto.


Aqui, conectado no slot 1 do meu Sony HitBit HB-F1 XV... O xodó da minha coleção de microcomputadores antigos.


Caso "nível 5" - Restauração de canhões antigos de brinquedo

Este caso é particularmente curioso, por se tratar de uma pequena coleção de 3 pequenos canhões de brinquedo, feitos artesanalmente na Argentina, com a marca "Cañones Goliat".

São réplicas em escala de canhões históricos, feitos em bronze, madeira e plástico, que têm um curioso mecanismo interno que consiste em uma mola que impulsiona um copo de bronze que dispara uma bolinha plástica.

Para armar esses canhões, põe-se a bolinha plástica dentro do copo de bronze e empurra-se esse copo de bronze para dentro do canhão, prendendo-o com um pavio.
Para dispara-lo, acende-se o pavio que ao se consumir, destrava o copo que é então disparado pela mola.


Na foto, um desses canhõezinhos ainda todo corroído com o tempo ao lado de uma peça de um outro, já lixado, escovado e polido.


Este caso, eu classifiquei como um exemplo de "nível 5", porque além das habilidades em desmontar e montar os objetos, é preciso habilidade em trabalho com metais, vernizes, abrasivos, lixas e o cuidado de se preservar as características originais de objetos que para o cliente são muito especiais, pois marcaram sua infância. E é aqui que entra a maior dificuldade desse tipo de trabalho: a responsabilidade: Um deslize e o objeto pode ser arruinado.
O cliente tinha plena certeza dos riscos e o alertei bem sobre isso antes de aceitar o trabalho.
Uma vez acordados, desafio aceito e... lá vamos nós com os canhões para o laboratório...

Como infelizmente não fiz muitas fotos deste trabalho (que foi um dos primeiros de restaurações artísticas deste tipo que peguei e que me incentivou a começar a fazer isso profissionalmente em tempos de vacas magras), Fica difícil explicar todo o processo com fotos, mas por outro lado, os outros casos desta postagem dão uma idéia de parte do processo.

Tudo começa com a desmontagem dos objetos, observando (ou anotando) cuidadosamente onde cada peça vai e de que maneira.


As peças de um dos canhões. Uma das rodas já não existia mais. Só havia o cubo dela.


O mecanismo dos canhões estava completamente preso dentro dos tubos de bronze.
Precisei esfriar as peças com gelo, aplicar desengripante e tentar soltar aos poucos com o auxílio de uma morsa e outras ferramentas.

Um deles foi mais complicado porque o copo estava completamente entalado dentro do tubo, de modo que tive de bater nele com um martelo e um prego torcendo para ele pelo menos se soltar.
A idéia funcionou e pude remover o copo como fiz com os outros dois canhões.

Com a ajuda de uma mini-retífica, com pontas de pedra abrasiva, removí todo o zinabre e óxido de dentro do tubo maior de bronze e da parte externa do copo de cada canhão, para que o mecanismo voltasse a funcionar livremente. Aproveitei para lavar e lubrificar cada mola.

Um dos parafusos de trava de curso do copo do canhão, precisou ser substituído por um novo, pois a cabeça do parafuso original estava espanada.

O próximo passo foi lixar e polir todas as peças metálicas, usando uma escova de aço, depois uma escova de cobre, depois lixas de grano médio até mais fino e por último, palha de aço com massa de polimento, finalizando com algodão de polimento, lavagem e depois mais massa de polimento e mais algodão de polimento, encerrando com uma lavagem e limpeza geral com óleo mineral.

Os blocos de madeira foram lixados e re-envernizados. Nada demais.

Mas essa brincadeira toda, levou 2 dias de trabalho.


Exemplos de peças já polidas e tratadas.

Aí foi só montar novamente os 3 canhões. A parte mais gostosa de fazer.


Canhões montados, mas um deles, sem as rodas.

O cliente ficou maravilhado com o trabalho.
Ele não conseguia acreditar que esses canhões pudessem ficar novamente com o aspecto brilhante de quando ele era criança.
Sugerí a ele, limpa-los sempre com óleo mineral, para prevenir novas camadas de óxido.


Mas não acabou por aí...

Como um dos canhões estava com uma roda trincada e faltando a outra roda, peguei a roda original trincada, medí cuidadosamente cada detalhe com um paquímetro digital e modelei no meu velho "amigo" dos meus tempos de Computação Gráfica, o Strata 3D, pacote em que sou certificado (na época ainda se chamava Strata Studio Pro) e já tive uma revenda oficial dele... A muuuuitos anos atrás, quando ele ainda era um dos melhores pacotes 3D do mundo, deixando para trás até os tradicionais Autodesk 3D Studio (que mudou de nome para 3D Studio Max e depois 3DS Max... Mas que sempre achei uma porcaria) e o pioneiro Lightwave... Até que todos foram superados pelo Wavefront Maya, infelizmente comprado pela Autodesk.

Bons tempos... Mas puxa! Como eu estava enferrujado nisso!
Já não mexia mais com essas coisas de Computação Gráfica de 2006!


O velho Strata 3D... Velho, mas não decepciona.

 

Como a idéia do meu amigo era imprimir rodinhas novas em 3D, importei o trabalho no Blender. (Certamente o mais poderoso pacote 3D do mercado hoje... e é software livre!)

Aí eu exportei para todos os formatos 3D que pude para passar para ele, já que ele é que ficou de mandar imprimir em 3D.


O moderno, extraordinariamente poderoso (e complexo) Blender... E a melhor parte: Software livre rodando em Linux Mint.
 

Ainda não ví as rodinhas impressas. Mas uma vez que que essa parte ficou sob responsabilidade dele, considero a minha parte nessa restauração, completa.


A roda original que serviu de referência para modelar a roda ainda a ser impressa em 3D.


Bom... É isso aí, pessoal!

 

Última revisão deste artigo: 02 de março de 2024.

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